Maria Clara Albuquerque
DRT/PE 4916
O médico cirurgião pediatra e sanitarista da Prefeitura de Olinda Carl Roichman foi o primeiro presidente do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde de Pernambuco (COSEMS/PE). Ele acompanhou o início da luta pela fundação do Sistema Único de Saúde (SUS) bem como o início da trajetória e criação do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS). Como primeiro gestor à frente do COSEMS/PE, ele conta quais os maiores desafios que enxerga, atualmente, para o SUS e como foram esses primeiros anos de militância.
COSEMS/PE: Quais foram os principais embates, bandeiras de lutas ou proposições que o COSEMS-PE participou e/ou defendeu nos primórdios do SUS?
CARL ROICHMAN: No início dos anos 1980, os municípios que tinham estruturas próprias de Saúde para financiar seus sistemas tinham que se submeter aos “convênios” com o antigo INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica) e eram remunerados por sua produção na mesma filosofia da “contratação dos serviços privados”. Os desarticulados tinham que se socorrer do “prestígio político de seus prefeitos para conseguirem verbas para custear construções, reformas e equipamentos”. Seus parcos recursos próprios eram insuficientes para a manutenção de qualquer política municipal de Saúde.
A partir daí, deu-se uma mobilização nacional, iniciada em 1979, em uma reunião de secretários municipais de Saúde, em Campinas/SP. Partiu-se para luta pelo Sistema Único de Saúde que culminou com a presença maciça de secretários municipais na 8ª Conferência Nacional de Saúde, lançando os princípios da Municipalização da Saúde.
Em Pernambuco, em 1986, constituímos a comissão provisória do COSEMS-PE e, em 1987, foi convocado para Caruaru o 1º Encontro Estadual de Secretários Municipais de Saúde sendo criado o Conselho e eleita a sua primeira Diretoria. A partir de então, foi intensa a mobilização junto aos municípios para criação de Secretarias Municipais de Saúde pois, na sua grande maioria, o setor Saúde ficava a cargo da Assistência Social do município. Com reuniões regionais bimestrais em todo o Estado conseguimos estruturar um órgão forte e dinâmico que nos deu condições de trazer para a cidade de Olinda, em Pernambuco, o V Encontro Nacional de Secretários Municipais de Saúde, tendo como marco histórico a fundação do CONASEMS.
Destacam-se como bandeiras de lutas, a própria Municipalização da Saúde, a Reforma Sanitária Brasileira e a implantação do Sistema Único de Saúde.
COSEMS/PE: Na sua opinião, quais os principais desafios atuais do SUS, após 30 anos de sua existência?
CARL ROICHMAN: Na sua audaciosa pretensão de ser universal, integral e igualitário, o SUS padece, ainda, do subfinanciamento da Saúde. Com gastos de menos de 400 dólares por habitante/ano, nunca poderá atingir esses princípios de maneira adequada. Conseguir construir o Sistema de forma hierarquizada, com otimização dos serviços e resolutividade, ainda, é meta distante e que necessita de grande mobilização do setor.
COSEMS/PE: Você poderia relatar fatos interessantes, relevantes, ou mesmo pitorescos de quando participou da direção do COSEMS/PE e que fazem parte suas recordações?
CARL ROICHMAN: Em junho de 1989, o COSEMS/PE já contava com grande número de Secretarias Municipais de Saúde, articuladas e atuantes. Seria realizado, em Porto Alegre, o VI Encontro de Secretarias Municipais de Saúde e VII Encontro de Secretários. Na vanguarda do processo de mobilização pela implantação do SUS, mais de 30 representantes de municípios pernambucanos partiram, em um único vôo da falecida VASP, para o tão desejado Encontro.
Era uma festa só. Na época, os vôos contavam com um verdadeiro “serviço de bordo” com refeições fartas, cervejas, vinhos e uísque à vontade. No entanto, como o grupo era bastante sedento, todo o estoque do avião ficou nos ares. Com muita alegria, brincadeiras e bebidas, vencemos a primeira etapa da viagem com uma malfadada escala em São Paulo.
Na troca do avião, este narrador, preocupado com o “bem beber” da turma, dirigiu-se à aeromoça do voo seguinte solicitando que o avião fosse, devidamente, abastecido para que não faltasse “combustível” a tão ávidos bebedores. Entramos todos e ocupamos nossos lugares. Prontos para a partida, surgem no corredor do avião três distintos senhores, devidamente paramentados de paletós e gravatas, que apresentam-se como policiais federais. Dirigem-se a mim e pedem que os acompanhem para fora do avião sob o argumento de que o Comandante Dalara havia solicitado a retirada do voo de um “elemento perturbador da ordem”. Nosso companheiro Paulo Dantas, com a astúcia que lhe é peculiar e percebendo a manobra que ocorria, convocou de imediato a todos os companheiros que me acompanhassem para a fora do avião e deu-se o imbróglio.
Todos saíram para a ponte e começou a discussão sobre o que estava acontecendo. Na verdade, havia um passageiro a mais do que o número de assentos do avião. Como ninguém poderia viajar em pé, o comandante resolveu eliminar o engraçadinho que havia pedido mais uísque. Conversa vai e conversa vem decidiu-se pela contagem dos passageiros e assentos e a tripulação solicitou que todos entrassem no avião e ocupassem seus lugares, o que começou a ser feito. Quando chegaram os últimos – eu, Paulo Dantas, Paulo Santana e Ana Paula Soter -, impediram a minha entrada dizendo que eu não precisaria entrar e, novamente, começou o bate-boca. Aproveitando o momento em que discutíamos com os policiais, a tripulação entrou e, sorrateiramente, fechou a porta do avião, dando partida ao mesmo.
Ficamos os quatro em São Paulo, largados pelos policiais, na porta do Free Shop, talvez com a intenção de que comprássemos alguma coisa importada e déssemos motivo para uma verdadeira punição. Não caímos na armadilha e procuramos o posto policial do aeroporto a fim de darmos queixa. Ali, mais uma decepção: policiais civis, vindos dos tempos escuros do nosso país, zombaram e disseram que nada poderiam fazer. De nada valeu sermos jovens idealistas e lutadores pela Saúde do Brasil.
Já tarde da noite e sem ter o que fazer, fomos aconselhados a procurar o DAC (Departamento de Aeronáutica Civil). Feito e resolvido. O agente nos conduziu até a loja da VASP e exigiu que fôssemos transportados e alojados em hotel e garantido o embarque no próximo voo para Porto Alegre, que se daria no dia seguinte. Ali, começou nossa vingança contra a infeliz atitude da companhia. No hotel, exigimos quarto individual para cada um, refeição adequada e o transporte de volta ao aeroporto no horário marcado para o embarque. No dia seguinte, embarcados e sem uísque, chegamos a Porto Alegre. Já na escada de descida do avião, confirmávamos a amizade, a solidariedade e o companheirismo do grupo pernambucano: todos estavam no aeroporto a nossa espera. Aí a festa continuou.